12 de abr. de 2010

"Desejo e perigo" e as armadilhas do querer

Certos diretores merecem o epíteto de artesãos da imagem e da palavra, por seu talento inconfundível e indiscutível para se lançar no ato de contar uma história. Essa alcunha cabe perfeitamente para Ang Lee, um dos mais influentes e famosos cineastas do mundo oriental. Sua carreira é marcada por belíssimos exemplares audiovisuais, como "A arte de viver", "Cavalgada com o diabo" e "Tempestade de gelo". E como não se lembrar do show de imagens coreografadas de "O tigre e o dragão"? O recente "O segredo de Brokeback Mountain" também não pode ficar de fora dessa equação.

Mas o foco dessa crítica está em "Desejo e perigo", longa que concedeu o segundo Leão de Ouro no Festival de Veneza ao diretor, já que fou considerado o melhor filme em 2007. A despeito do prêmio imponente, o atraso com que chegou aos cinemas brasileiros foi de 2 anos. Uma demora injustificável, pois o filme é digno de todas as láureas que a ele possam ser concedidas. Com sua trama que brinca o tempo todo com o engano que as aparências causam, Lee entrega uma obra madura, consistente e que prende a atenção do início ao fim.
O que se vê na tela, ao longo de 157 minutos, é a trajetória da jovem Wang Jiazhi, modificada a partir do momento em que entra para um grupo de teatro. A companhia é formada por outros jovens, que acreditam na arte como um instrumento de resistência contra a barbárie que toma conta de mundo. Esse é um pensamento que acompanha alguns artistas ainda hoje, e não deixa de ter sua validade como tese. Mas na prática muitas vezes pode acabar soando panfletário, sem surtir o efeito desejado. E é exatamente o que acontece com o grupo ao qual Wang se associa. A ocasião na qual eles se encontram é a ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial, um episódio bastante delicado da história recente da China. Wang é chinesa, e o brilho irradiado por ela logo a torna a estrela do grupo teatral de que faz parte.

Seus companheiros de ofício acabam vendo nessa ascensão veloz uma chance única de usá-la como isca para atrair o Sr. Yee, que trabalha para os japoneses. A intenção dos rapazes é assassiná-lo, por tudo aquilo que ele representa.
Esse mote é apenas o pontapé inicial de um jogo que vai ganhando contornos complexos, como uma corrida de gato e rato em que ora um assume o papel de algoz e o outro o de vítima, ora a brincadeira se inverte. Wang tem a função de seduzir Yee, o que a impede de se apaixonar por ele. Mas essa é exatamente a armadilha na qual ela cai: desenvolver um sentimento forte por aquele a quem deveria prejudicar. Um detalhe importante que põe toda a estratégia engendrada pelos membros da companhia teatral em perigo, e formando a díade de sentimentos que nomeia o filme em português e também em seu título original. E são eles que conduzem as reviravoltas que Lee preparou para supreender o espectador. As surpresas, aliás, são fundamentais para a narrativa, que se apoia inicialmente em uma temática já constantemente repisada. A ideia de falar sobre um plano de destruição que fracassa por causa do nascimento da paixão por quem se deveria querer mal aparece em dezenas de filmes. A diferença reside na maneira como o assunto se desenvolve. Em "Desejo e perigo", ele vai muito além das querelas que causam situações pitorescas e que levam ao riso fácil e escancarado. Nada contra meros passatempos para desopilar o fígado. Mas o espaço de refelexão e encantamento que também pertence ao cinema precisa ser igualmente considerado, em que pese a capacidade desse veículo de mexer com as nossas emoções de modo muito sofisticado. Ang Lee demonstra que é plenamente consciente dessa qualidade maravilhosa do cinema, e se utiliza dela com vigor e beleza.
As imagens apresentadas pela direção de fotografia não deixam mentir. Cada sequência do filme é de um deslumbre incontestável, configurando uma atmosfera inebriante que, inclusive, aguça o desejo. O ápice desse movimento em direção ao aflorar da libido está na cena de sexo vivida pelos protagonistas. É uma sequência bastante despudorada, que certamente exigiu bastante desprendimento e intimidade entre os atores para que fosse realizada. De qualquer forma, tudo passa longe da vulgaridade e da gratuidade. Também há uma certa dose de violência, já que em dado momento do filme os jovens quase conseguem atingir o objetivo a que se propuseram. A cena em que os rapazes quase matam Yee revela o quanto o político já está ciente do estratagema que lhe foi preparado. Esses poucos e angustiantes minutos também trazem á uma constatação que se estende para a vida em geral: nunca se é totalmente inocente de nada. Pelo contrário, sempre há uma intenção oculta por trás daquilo que se diz ou se faz. Se boa ou ruim, já é matéria de outra discussão.

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